sábado, 9 de abril de 2011

Direito e Literatura: um exercício de desaprendizagem


Publicado na 29 edição do Jornal Estado de Direito.


Judith Martins-Costa [1]


Entre Direito e Literatura há algumas semelhanças e muitas diferenças. A maior das semelhanças está na circunstância de a narração literária e a narração jurídica serem forças estruturantes de um mesmo Nomos, o universo normativo em que vivemos tanto quando vivemos no Cosmos, o mundo físico em que progressivamente nos inserimos desde o nosso nascimento (R. Cover). O universo normativo é um “universo narrativo”: normatizar é inseparável do narrar. Narra-se o texto da lei, narram os que dizem o que a lei diz.
Toda narração é constitutiva. É no Nomos, diz Robert Cover, que descobrimos a alteridade e aprendemos a nos mover entre as normas; é no Nomos que conhecemos e operamos os nossos conceitos normativos. Fundados nessa coabitação normativa em tudo semelhante à coabitação psíquica ou à coabitação linguística, “criamos e sustentamos, constantemente, um mundo do bem e do mal, do legal e do ilegal, do válido e do inválido”, relativamente aos quais as regras e os princípios, as instituições solenes do Direito e as convenções da ordem social constituem apenas uma pequena parte, pois “nenhum conjunto de instituições jurídicas, nenhum conjunto de prescrições existe independentemente das narrações que os situam e lhes dão sentido” (R. Cover).
É nesse ponto, precisamente, que encontro a primeira razão para o trabalho comparativo (desde que seriamente levado a efeito) entre Direito e Literatura. Ambos se ocupam de muitos temas comuns: casamento, testamento, pena, culpa, castigo, dinheiro, risco, os laços sociais e as suas rupturas; ambos, igualmente, repousam em ficções, no “como se”, muito embora no Direito estas sejam ficções necessárias à produção de uma coerência sem a qual não seria possível ordenar (Biet), muito embora a Literatura, frequentemente, se aposse dos “como se” do Direito para as por em causa, pela sátira ou pela reflexão.
O que mais importa, contudo, são as diferenças. É pelas diferenças, comparativamente estruturadas, que a associação entre Direito e Literatura encontra, a meu juízo, a maior relevância.
O Direito, disse Bernard, é ao mesmo tempo espelho e geômetra do mundo; já a Literatura nada quer espelhar nem ordenar – sua função é subverter. A Literatura não é “representação” do real, é constituição/reconstrução do real, pela palavra. Não ordenando, mas subvertendo, pode re-situar os outros discursos, as demais narrações estruturantes do Nomos.
A capacidade da Literatura para re-ordenar os outros discursos, deriva fundamentalmente, segundo Bessiere, da conjugação entre três traços: o transporte, a não-literalidade e a plurivocidade. Diferentemente do discurso da lei, fundado numa pretensão de composição entre littera e espírito, entre texto e significado, a palavra literária marca a distância da literalidade e, por isso mesmo, trans-porta permitindo visualizar, compreender, relativizar e preencher os conceitos utilizados pelo jurista. A plurivocidade decorre de o texto literário – sendo feito de deslocamentos, contaminações, predações, automatismos, intertextos – estar “fora do reconhecimento por uma voz singular” (Bessiere) permitindo, justamente, mensurar o que não é a nossa voz pessoal. Por conta da conjugação entre essas três características os textos literários viabilizam o compartilhamento de critérios de representação de uma dada comunidade conferindo a condição de sua inteligibilidade.
O compartilhamento de critérios integra e constitui o Nomos, estruturando o chão da coahabitação normativa. No mundo normativo, afirma Robert Cover, o Direito e a narração estão inseparavelmente ligados, pois toda prescrição exige ser situada no interior de um discurso, sendo precedida por uma história, um destino, um início e um fim, uma explicação e uma finalidade. A narração explicita as normas, conferindo a sua significação: sem o suporte narrativo toda norma seria vazia de sentido. É por isso que viver em um mundo jurídico, “exige conhecer não apenas os preceitos, mas, igualmente, aquilo que os liga aos estados de coisas possíveis e plausíveis, o que demanda sermos capazes de integrar “o ser” e o “dever ser” e, igualmente, o “pode ser”. O “mundo comum” de que falara Cover é o mundo tecido pelas relações de “co-presença” (Genette), de inclusão, e, também, por relações de derivação, da existência de textos em relação. Entre narração (literária) e normação (jurídica) existe um nexo dinâmico, aquela tecendo a trama desde a qual a norma é compreensível, conferindo-lhe os significados, ressignificando-as, preenchendo os espaços vazios, interagindo, dialogando, pois o Nomos é intertextual.
Os critérios compartilhados aptos a tornar inteligível certo discurso, são encontrados no Direito, modo geral, na narração doutrinária. Esta resulta na formulação de modelos hermenêuticos destinados a atuar como espécie de metalinguagem, cujo valor é não apenas cognoscitivo, mas, verdadeiramente, constitutivo da própria experiência jurídica (Miguel Reale). É, portanto, concomitantemente, narração e normação. O que, porém, está por detrás dos textos doutrinários em sua tarefa de narrar/normatizar os critérios? Quais são os traços deixados na concha – isto é, nos conceitos, objeto da narração doutrinária – pelos seus antigos locutores, que continuam a pesar em nosso raciocínio?
Tal qual o marisco que um dia habitou a concha abandonada na praia e está hoje desaparecido – mas nela deixou os seus traços -, também assim certas palavras (como licitude; personalidade; culpa; risco; responsabilidade; contrato; patrimônio; propriedade; família; igualdade sucessória, etc) cotidianamente usadas pelos juristas são “palavras habitadas” que, no seu curso, “nunca esquecem seu trajeto, nunca se desembaraçam totalmente do domínio dos textos concretos a que pertencem” (Bakhtin). Por isso o seu sentido mostra-se melhormente compreensível em sua riqueza quando ouvimos as vozes transportadas literariamente.
Daí a relevância do trabalho comparatista entre esses dois campos narrativos-normativos, traçando-se a comparação pelo método da estruturação entre as diferenças. Abandonada a pretensão da similitude entre os campos, poderemos compreender que os textos literários – suspendendo os juízos, questionando os vereditos, representando as representações do Direito – funcionam como um instrumento de ótica sem equivalente, capaz de mostrar aquilo que os textos da doutrina não podem expor: o modo pelo qual, minuciosamente, se engrenam cotidianamente, por signos quase invisíveis, as normas e os costumes, as instituições e as trajetórias sociais (Tessier-Erminger).  Os textos literários atuam, pois, na desaprendizagem dos significados estratificados pela mentalidade, pelo senso comum dos juristas, e, consequentemente, nos ensinam a ver, compreendendo sobre o que estamos realmente a falar quando empregamos, obnubilados, as palavras de nosso cotidiano forense.






[1] Judith Martins-Costa é vice-presidente do IEC – Instituto de Estudos Culturalistas. Livre-Docente pela Universidade de São Paulo. Foi professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFRGS entre 1992 e 2010. O texto aqui reproduzido sintetiza o que escreveu em: NARRAÇÃO E NORMATIVIDADE – Ensaios de Direito e Literatura, a ser brevemente publicado pela Editora GZ, Rio de Janeiro.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Resenha - "Antígona" para além do Direito Natural: edição indispensável aos estudiosos da tragédia sofocleana

Lucas do Nascimento [1]


ANTÍGONA
Sófocles
Tradução: Lawrence Flores Pereira
Introdução e notas: Kathrin Holzermayr Rosenfield
Ed. TOPBOOKS, 208 p.

Antígona, de Sófocles, suscita acirrados debates há séculos. Somente nos últimos dois, produziram-se dezenas, se não centenas de abordagens sobre a tragédia. Representada pela primeira vez em 441 a.C., em Atenas, a obra nasceu sob os auspícios da genialidade sofocleana, recebendo efusivo acolhimento na polis ateniense. Contudo, apenas destacou-se nas discussões jurídicas modernas por meio de Hegel. A abordagem, ainda hoje realizada, que sublinha o conflito entre direito natural e direito positivo em Antígona remonta à mudança de leitura efetuada pelo filósofo alemão, que estabeleceu novos cânones para a interpretação da obra. Não fossem contribuições intelectuais como as de Kathrin Rosenfield e traduções como a de Lawrence Flores Pereira, arriscaríamos, no Brasil, a permanecer limitados a uma compreensão excessivamente alegórica da tragédia, simplificando sua complexidade em um conflito entre poucos e pobres elementos abstratos, isto é, os de direito natural e de direito positivo.
Na edição de Antígona da qual por ora se trata, o tradutor e a comentarista norteiam o seu trabalho na leitura realizada pelo poeta Hölderlin, expoente do romantismo alemão. Contudo, servem-se também de outras edições consagradas sobre a tragédia (Jebb, Mazon, Schadewaldt, Reinhardt, Dawe, Bollack e Loraux), colocando-a em debate sob diferentes pontos de vista. Como se não bastasse a qualidade das fontes, acertam na metodologia: com vistas às ambigüidades e nuances do texto grego, os autores preocupam-se com o desbravamento de seu “subtexto”, ou seja, da riqueza e complexidade que afloram “da superfície aparentemente equilibrada e racional da poesia sofocleana” (p. 10). Não é por outro motivo que, atentos ao que há de trágico na tragédia, ao sutil e poético da experiência de vida humana, conseguem retirar do estudo importantes e singulares resultados. Vejamos o contexto visualizado pelos autores, a partir do qual se desenvolverão os grandes e pequenos conflitos nesta edição de Antígona, garantindo sua originalidade.
Antígona pertence à linhagem dos Labdácidas, ou seja, à linhagem dos reis de Tebas. Em Édipo Rei, Laio, seu avô e rei de Tebas, é morto por seu pai, Édipo, que casa com sua mãe, Jocasta, tornando-se o novo rei da cidade. Em outras palavras, Édipo mata o próprio pai sem o saber, se une com sua própria mãe, também sem conhecimento do parentesco, e gera filhos dessa união, isto é, Antígona, Polinices, Etéocles e Ismene. Portanto, Antígona nasce de um incesto, sendo ao mesmo tempo irmã e filha de Édipo, assassino de seu avô. Dessa maneira, instaura-se não apenas uma problemática de cunho religioso (poluição de Tebas pelo destino de seus dirigentes), mas também familiar (genealógica) e dinástica (política) mais ampla.
Em razão de tais fatores, a desgraça e a morte se abatem sobre Édipo e sobre Jocasta. [2] Os dois irmãos de Antígona entram, então, em um acordo sobre se revezarem em períodos de um ano no trono de Tebas. No entanto, Etéocles desrespeita o pacto e não passa ao irmão o trono da cidade no período acordado, o que leva Polinices a aliar-se à polis de Argos, a fim de submeter Etéocles à força. Dessa forma, os irmãos digladiam-se pelo trono de Tebas, a ponto de por pouco não levarem a cidade à ruína. Os dois acabam por matarem um ao outro, fratricidas e suicidas, pelo sangue derramado ser o do irmão ao mesmo tempo que o próprio. Cometem, portanto, dupla transgressão, em ameaça redobrada ao solo pátrio. [3]
Quem salva Tebas é Creonte, descendente de Meneceu e Oclaso e, portanto, pertencente a uma linhagem de conselheiros reais e de regentes. Para isso, sacrifica seu filho Megareu, “coroando gloriosamente seus serviços meritórios” (p. 13-14) à cidade. Contudo, por maiores que tenham sido seus esforços, vê Tebas e suas pretensões à realeza ameaçadas pelos Labdácidas, linhagem em desgraça que permanece viva e em Tebas sob as figuras de Antígona e de Ismene.
Uma das maiores virtudes desta edição de Antígona é manter sempre em vista o contexto no qual se desenvolve a obra, ou seja, em que ambiente se insere a interdição de Creonte em relação ao enterro de Polinices e a desobediência de Antígona para com Creonte. Antígona não só é a viva personificação de uma amaldiçoada linhagem de reis, como é mulher e tem direitos em relação ao trono. Lembra Kathrin que na época em que a peça Antígona foi apresentada, existia em Atenas a instituição do epiklerado, “que garantia à filha de um rei morto sem descendência o direito e o dever de parir um descendente para seu pai” (p. 16). Além do mais, Antígona é uma ameaça não-passiva, já que rebelde aos intentos de Creonte.
Enquanto isso e por outro lado, Creonte é o instrumento de uma ordem que se julga necessária frente ao caos. Procura ele afirmar o seu poder na arruinada cidade que salvara, o que faz entendendo proteger Tebas daqueles que a desgraçaram, a linhagem dos Labdácidas. Como se percebe, a tragédia está longe de limitar-se ao embate dicotômico entre direito natural e direito positivo. É nesse sentido que Kathrin identifica não um, mas três grandes conflitos em Antígona: o enterro de Polinices; o governo de Tebas; e a purificação da cidade.
Com grande conhecimento sobre as práticas do mundo antigo, os autores desenvolvem esses problemas e outros mais deles decorrentes. Surpreendentemente, conciliam o aparentemente inconciliável, isto é, o espírito científico e o rigor metodológico com a riqueza artística, em uma tradução produzida para a encenação de Antígona no palco. [4] É dessa forma que os autores, de maneira ímpar, tornam esta uma edição essencial para aqueles que, em língua portuguesa, adentrarem no complexo universo da mais conhecida tragédia de Sófocles.





[1] Lucas do Nascimento é bacharelando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Coordenador Geral do CUIC (desde 2009).
[2] O destino de Édipo e o de Jocasta encontram-se narrados nas obras Édipo Rei e Édipo em Colono, ambas de Sófocles.
[3] Os episódios da guerra entre Etéocles e Polinices estão na tragédia Os sete contra Tebas, de Ésquilo.
[4] Inclusive, Luciano Alabarse e seu elenco inspiraram-se nesta edição para, em parceria com Kathrin, Lawrence, além de atores, músicos, bailarinos e cantores, apresentarem Antígona nos palcos de Porto Alegre nos anos de 2004 e 2005.



domingo, 3 de abril de 2011

O Grande Ditador (The Great Dictator, EUA, 1940)

Uma visão aristotélica sobre “Se7en”

Veyzon Campos Muniz [1]



O diretor David Fincher é conhecido por ter como característica marcante a preocupação com efeitos de som e luz casados com a exposição de seres humanos (e, por vezes, não humanos, como no caso de “Alien 3”), cujo comportamento e caráter são postos à prova diante de situações de tensão extrema, dando assim, aliado a uma edição perfeita, o timing de grande thriller a boa parte de suas películas. Em “Se7en” (New Line Cinema, EUA, 1995) esta marca do diretor não deixar de estar presente.
Destarte, fazendo uma análise filosófica dos protagonistas e do antagonista do filme, com base na leitura do Livro VII de “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles, observa-se certas semelhanças de alguns dos perfis propostos na obra com os personagens do filme. Vamos à história.
Dois policiais, o jovem Detetive David Mills (Brad Pitt), em busca de ascensão na carreira policial, e o experiente Detetive William Somersett (Morgan Freeman), a uma semana da aposentadoria, são designados para conduzir a investigação de uma série de homicídios que vem acontecendo na cidade de Nova Iorque. Ambos acreditam que o responsável seja um serial killer que mata justificando-se na eliminação dos sete pecados capitais. Posteriormente, John Doe (Kevin Spacey), o responsável pelas mortes, se entrega, todavia, com seu “trabalho” ainda inacabado.
Mills é um exemplo perfeito do que Aristóteles chamaria de incontinente. Age visando objetivos e finalidades boas e racionais, porém, sem qualquer moderação e autocontrole (é excessivamente impetuoso). Ele pensa que a melhor forma de fazer o que faz é aquela, e está errado. Não é de todo mau, mas pelo hábito, acaba sendo.
Somersett é um homem incrédulo no mundo, sendo perceptível que a sua experiência e a sobreposição de sua vida profissional o tenha tornado assim. É bastante ponderado e preciso com as palavras e as atitudes. Age de forma mais agressiva quando é necessário. É continente, sabe como agir e se posicionar diante das situações extremadas pelas quais passa. Não é virtuoso, mas é racional.
John Doe, que em um primeiro momento poderia ser visto como um ser bestial, não o é. Afinal, não é sobre-humano e age com meticulosidade e inteligência. Em um segundo olhar, poderia se pensar que é um incontinente, pois tenta demonstrar constantemente sua racionalidade. Por certo age com consciência, mas não é motivado pela razão e sim pelo seu prazer. Sua argumentação não se sustenta e não pode se arrepender. Age com paixão e pelo apetite. É vicioso, nos termos de Aristóteles. 
Em síntese, mais do que uma oportunidade de reflexão filosófica, o filme “Se7ven” proporciona 128 minutos de muita tensão e emoções das mais diversas. Com um dos finais mais surpreendentes do cinema, vale a pena ser assistido (e revisto).  




[1] Veyzon Campos Muniz é bacharelando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Coordenador Adjunto do CUIC (desde 2010).