sexta-feira, 8 de abril de 2011

Resenha - "Antígona" para além do Direito Natural: edição indispensável aos estudiosos da tragédia sofocleana

Lucas do Nascimento [1]


ANTÍGONA
Sófocles
Tradução: Lawrence Flores Pereira
Introdução e notas: Kathrin Holzermayr Rosenfield
Ed. TOPBOOKS, 208 p.

Antígona, de Sófocles, suscita acirrados debates há séculos. Somente nos últimos dois, produziram-se dezenas, se não centenas de abordagens sobre a tragédia. Representada pela primeira vez em 441 a.C., em Atenas, a obra nasceu sob os auspícios da genialidade sofocleana, recebendo efusivo acolhimento na polis ateniense. Contudo, apenas destacou-se nas discussões jurídicas modernas por meio de Hegel. A abordagem, ainda hoje realizada, que sublinha o conflito entre direito natural e direito positivo em Antígona remonta à mudança de leitura efetuada pelo filósofo alemão, que estabeleceu novos cânones para a interpretação da obra. Não fossem contribuições intelectuais como as de Kathrin Rosenfield e traduções como a de Lawrence Flores Pereira, arriscaríamos, no Brasil, a permanecer limitados a uma compreensão excessivamente alegórica da tragédia, simplificando sua complexidade em um conflito entre poucos e pobres elementos abstratos, isto é, os de direito natural e de direito positivo.
Na edição de Antígona da qual por ora se trata, o tradutor e a comentarista norteiam o seu trabalho na leitura realizada pelo poeta Hölderlin, expoente do romantismo alemão. Contudo, servem-se também de outras edições consagradas sobre a tragédia (Jebb, Mazon, Schadewaldt, Reinhardt, Dawe, Bollack e Loraux), colocando-a em debate sob diferentes pontos de vista. Como se não bastasse a qualidade das fontes, acertam na metodologia: com vistas às ambigüidades e nuances do texto grego, os autores preocupam-se com o desbravamento de seu “subtexto”, ou seja, da riqueza e complexidade que afloram “da superfície aparentemente equilibrada e racional da poesia sofocleana” (p. 10). Não é por outro motivo que, atentos ao que há de trágico na tragédia, ao sutil e poético da experiência de vida humana, conseguem retirar do estudo importantes e singulares resultados. Vejamos o contexto visualizado pelos autores, a partir do qual se desenvolverão os grandes e pequenos conflitos nesta edição de Antígona, garantindo sua originalidade.
Antígona pertence à linhagem dos Labdácidas, ou seja, à linhagem dos reis de Tebas. Em Édipo Rei, Laio, seu avô e rei de Tebas, é morto por seu pai, Édipo, que casa com sua mãe, Jocasta, tornando-se o novo rei da cidade. Em outras palavras, Édipo mata o próprio pai sem o saber, se une com sua própria mãe, também sem conhecimento do parentesco, e gera filhos dessa união, isto é, Antígona, Polinices, Etéocles e Ismene. Portanto, Antígona nasce de um incesto, sendo ao mesmo tempo irmã e filha de Édipo, assassino de seu avô. Dessa maneira, instaura-se não apenas uma problemática de cunho religioso (poluição de Tebas pelo destino de seus dirigentes), mas também familiar (genealógica) e dinástica (política) mais ampla.
Em razão de tais fatores, a desgraça e a morte se abatem sobre Édipo e sobre Jocasta. [2] Os dois irmãos de Antígona entram, então, em um acordo sobre se revezarem em períodos de um ano no trono de Tebas. No entanto, Etéocles desrespeita o pacto e não passa ao irmão o trono da cidade no período acordado, o que leva Polinices a aliar-se à polis de Argos, a fim de submeter Etéocles à força. Dessa forma, os irmãos digladiam-se pelo trono de Tebas, a ponto de por pouco não levarem a cidade à ruína. Os dois acabam por matarem um ao outro, fratricidas e suicidas, pelo sangue derramado ser o do irmão ao mesmo tempo que o próprio. Cometem, portanto, dupla transgressão, em ameaça redobrada ao solo pátrio. [3]
Quem salva Tebas é Creonte, descendente de Meneceu e Oclaso e, portanto, pertencente a uma linhagem de conselheiros reais e de regentes. Para isso, sacrifica seu filho Megareu, “coroando gloriosamente seus serviços meritórios” (p. 13-14) à cidade. Contudo, por maiores que tenham sido seus esforços, vê Tebas e suas pretensões à realeza ameaçadas pelos Labdácidas, linhagem em desgraça que permanece viva e em Tebas sob as figuras de Antígona e de Ismene.
Uma das maiores virtudes desta edição de Antígona é manter sempre em vista o contexto no qual se desenvolve a obra, ou seja, em que ambiente se insere a interdição de Creonte em relação ao enterro de Polinices e a desobediência de Antígona para com Creonte. Antígona não só é a viva personificação de uma amaldiçoada linhagem de reis, como é mulher e tem direitos em relação ao trono. Lembra Kathrin que na época em que a peça Antígona foi apresentada, existia em Atenas a instituição do epiklerado, “que garantia à filha de um rei morto sem descendência o direito e o dever de parir um descendente para seu pai” (p. 16). Além do mais, Antígona é uma ameaça não-passiva, já que rebelde aos intentos de Creonte.
Enquanto isso e por outro lado, Creonte é o instrumento de uma ordem que se julga necessária frente ao caos. Procura ele afirmar o seu poder na arruinada cidade que salvara, o que faz entendendo proteger Tebas daqueles que a desgraçaram, a linhagem dos Labdácidas. Como se percebe, a tragédia está longe de limitar-se ao embate dicotômico entre direito natural e direito positivo. É nesse sentido que Kathrin identifica não um, mas três grandes conflitos em Antígona: o enterro de Polinices; o governo de Tebas; e a purificação da cidade.
Com grande conhecimento sobre as práticas do mundo antigo, os autores desenvolvem esses problemas e outros mais deles decorrentes. Surpreendentemente, conciliam o aparentemente inconciliável, isto é, o espírito científico e o rigor metodológico com a riqueza artística, em uma tradução produzida para a encenação de Antígona no palco. [4] É dessa forma que os autores, de maneira ímpar, tornam esta uma edição essencial para aqueles que, em língua portuguesa, adentrarem no complexo universo da mais conhecida tragédia de Sófocles.





[1] Lucas do Nascimento é bacharelando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Coordenador Geral do CUIC (desde 2009).
[2] O destino de Édipo e o de Jocasta encontram-se narrados nas obras Édipo Rei e Édipo em Colono, ambas de Sófocles.
[3] Os episódios da guerra entre Etéocles e Polinices estão na tragédia Os sete contra Tebas, de Ésquilo.
[4] Inclusive, Luciano Alabarse e seu elenco inspiraram-se nesta edição para, em parceria com Kathrin, Lawrence, além de atores, músicos, bailarinos e cantores, apresentarem Antígona nos palcos de Porto Alegre nos anos de 2004 e 2005.



Nenhum comentário:

Postar um comentário