sábado, 2 de julho de 2011

NO PAÍS ONDE TODOS VÊEM, UM ENSAIO SOBRE A VISEIRA: KAFKA, ORWELL, TRUFFAUT E A IDENTIDADE BRASILEIRA

Montag é bombeiro em uma sociedade totalitária, um profissional que queima livros, todos eles, já que proibidos. Fiel a seus afazeres e, conseqüentemente, à lei que os condiciona, dedica-se à atividade incendiária sem questionamentos, pois assim lhe ensinaram a proceder. Tudo se modifica, no entanto, quando alguém revolucionariamente lhe pergunta: por que age dessa forma? Desperto de uma vida moralmente não experienciada, preestabelecida pelas prescrições jurídicas totalizantes, [1] Montag também se coloca fora de sua comunidade quando, em atividade tipicamente reflexiva, zetética, questiona: por que razões pode alguém querer entender as razões da lei? Ora, pela natureza deste pensamento, acaba-se por questioná-la igualmente. 
É esse, sucintamente, o eixo central da película Fahrenheit 451 (ING, 1966, 112 min.), de François Truffaut, adaptação cinematográfica do romance homônimo de Ray Bradbury. Obra marco acerca da alienação encoberta do dia-a-dia, da gênese social da esquizofrenia pela hipostasia do medo, enquadra-se em ciclo literário consagrado, do qual se destacam os livros 1984, de George Orwell, e O Processo, de Kafka, textos máximos sobre as tendências geradoras do comunismo stalinista e do fascismo, mas, mais do que isso, de uma versão exacerbada desses, em que o Estado, além de excessivamente interventor e burocratizado, não necessita mais afirmar-se pela história. [2]
Ora, a constante nas ficções supramencionadas é justamente a ausência de passado, de uma história pessoal ou política que se possa afigurar compreensível. Nelas, assim, a própria possibilidade da história se viu destruída. O protagonista de O Processo, K., sequer tem um nome sonante identificável. Suas memórias são esparsas e confusas. [3] K. não compreende, da mesma forma, parte alguma do processo contra si movido, já que insondáveis e infindáveis os mecanismos burocráticos, distanciados do comum dos homens.
 Em Fahrenheit 451, Montag, depois de questionar a lei e iniciar, clandestinamente, a leitura de livros, a conhecer histórias de outros indivíduos e, portanto, a perceber que tem uma, pergunta a sua esposa, Linda, se lembra de quando se conheceram, no que ela, surpresa, responde negativamente. [4] O único contato de Montag com a autoridade é através de suas instituições repressivas, e isso porque delas faz parte. No entanto, mesmo sendo bombeiro, acha ridícula a suposição de que no passado esses profissionais apagassem incêndios, pois “casas foram sempre à prova de fogo”. A própria autoridade não mais sabe o que foi e, conseqüentemente, o que é.
O mais significativo de todos, contudo, é Winston, de 1984, que, como primeiro ato de rebeldia contra a ordem que vê, mas não entende, começa a registrar a sua própria história pessoal em um diário. Digna de referência é a passagem em que a rebeldia de Winston se instaura, no momento em que decide abrir o diário comprado clandestinamente e nele escrever, quando, em completo desespero, percebe que sequer sabe qual é o ano no qual se encontra: O que agora se dispunha a fazer era abrir um diário. Não era um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois não havia mais leis), porém, se descoberto, havia razoável certeza de que seria punido, por pena de morte, ou no mínimo vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. [...] Na verdade, não estava habituado a escrever a mão. Exceto recados curtíssimos, o normal era ditar tudo ao falaescreve, o que naturalmente era impossível no caso. Molhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um temor lhe agitara as tripas. Marcar o papel era um ato decisivo. Com letra miúda e desajeitada escreveu: 4 de abril de 1984. Encostou-se ao espaldar. Descera sobre ele uma sensação de completo desespero. Para começar, não sabia com a menor certeza se o ano era mesmo 1984. [5]
 Nos regimes fictícios – ou nem tanto – com os quais trabalhamos é manifesta a ausência de uma lógica narrativa que reconheça as pessoas e sua história privada e pública, e o exacerbamento de uma lógica burocrática que restringe o campo dos destinos singulares e das morais comunitárias. Neste sentido, tais obras retratam uma realidade na qual não se configura uma concretude contextualizada que embase as construções comunitárias abstratas – a proposição ou outorgação de leis. Nas sociedades apresentadas, faz-se impossível que pela abstração e racionalidade estatais se construa um futuro com base no passado legado ao presente pela lógica narrativa. Do passado nada se aproveita, do presente nada se entende, mas para o futuro se caminha – às cegas e arbitrariamente.
Assim, compreendem-se os motivos para a rebeldia através da história. Negar o passado, considerá-lo sempre algo a ser evitado, é atentar contra qualquer construção valorativa consuetudinária, a qual é alicerce necessário para a consolidação de regimes estáveis e justos, na medida em que garante o reconhecimento privado e singular dos valores públicos e coletivos, e vice-versa. Portanto, em um país em busca de si, de sua identidade, é urgente que se atente para o testamento que lega o passado, e não a valorização daqueles atos de pura vontade pelos quais, sem basear-se neste legado, busca-se construir um futuro melhor. É lastimável, por isso, o fato de no Brasil muitos utilizarem a pior das viseiras, a que impede a visualização e aproveitamento do passado, impossibilitadora de qualquer compreensão mútua entre o poder público e os sujeitos concretamente tomados.

Lucas do Nascimento
Coordenador Geral Discente do CUIC


[1] Condição humana que é fruto da pura aceitação da lei positiva e neutra em detrimento do substrato valorativo das instituições e da consciência moral dos sujeitos, isto é, do desejo de segurança frente à natural impredizibilidade da vida humana. Sobre o ponto, cf. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 6. ed., trad. de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 92.
[2] Na experiência mundial verificável, no que toca aos regimes totalitários concretizados, a constante indicativa de alienação foi a inexistência de histórias pessoais, possíveis instituintes da identidade individual dos seres, a partir da sempre presente afirmação de uma história estatal marcadamente construída, artificial, com a qual todos deveriam se identificar, facilitando a existência do homem totalmente político ou do cidadão total, pois a identidade dos sujeitos, dessa forma, passa a se confundir com a do Estado. O cotidiano dos homens, nessas sociedades, é construído de forma a aniquilar a existência do particular, ao mesmo passo em que se afirma fortemente a unidade de identidade do corpo político, no qual todos se fundem. Acerca do Estado total e do cidadão total, cf. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 54-55.
[3] Há discussão até mesmo sobre a correta organização cronológica dos capítulos dessa obra. Cf. CARRONE, Modesto. Um dos maiores romances do século. In: KAFKA, Franz. O processo. Trad. de Modesto Carrone. Rio de Janeiro: O Globo; Folha de S. Paulo, 2003. p. 246-247.
[4] Julgamos conveniente transcrever o diálogo completo presente na versão cinematográfica de Truffaut, em cena iniciada quando Montag descobre Linda retirando livros do esconderijo que havia criado. Legenda: M - Montag, L - Linda. “M - O que você está fazendo, Linda? / L - Encontrei estas coisas em casa. Eu não quero estas coisas, Montag. Elas me assustam. / M - Você passa o tempo inteiro na frente daquela ‘família’ na parede [programa de televisão interativo]. Estes livros são a minha família. Quando nos encontramos pela primeira vez? E onde? / L - O quê? / M - Quando nos conhecemos? / L - Não sei. Deixe-me pensar. Não, não consigo me lembrar. / M - Isso é um tanto triste, não acha? Eu acho. Eu acho que é muito triste. Por trás de cada um destes livros existe um homem. É isso que me interessa. Por isso, deixe-os em paz e volte para a cama”.
[5] ORWELL, George. 1984. 17. ed., trad. de Wilson Velloso. São Paulo: Ed. Nacional, 1984. p. 11-12.