sábado, 2 de julho de 2011

NO PAÍS ONDE TODOS VÊEM, UM ENSAIO SOBRE A VISEIRA: KAFKA, ORWELL, TRUFFAUT E A IDENTIDADE BRASILEIRA

Montag é bombeiro em uma sociedade totalitária, um profissional que queima livros, todos eles, já que proibidos. Fiel a seus afazeres e, conseqüentemente, à lei que os condiciona, dedica-se à atividade incendiária sem questionamentos, pois assim lhe ensinaram a proceder. Tudo se modifica, no entanto, quando alguém revolucionariamente lhe pergunta: por que age dessa forma? Desperto de uma vida moralmente não experienciada, preestabelecida pelas prescrições jurídicas totalizantes, [1] Montag também se coloca fora de sua comunidade quando, em atividade tipicamente reflexiva, zetética, questiona: por que razões pode alguém querer entender as razões da lei? Ora, pela natureza deste pensamento, acaba-se por questioná-la igualmente. 
É esse, sucintamente, o eixo central da película Fahrenheit 451 (ING, 1966, 112 min.), de François Truffaut, adaptação cinematográfica do romance homônimo de Ray Bradbury. Obra marco acerca da alienação encoberta do dia-a-dia, da gênese social da esquizofrenia pela hipostasia do medo, enquadra-se em ciclo literário consagrado, do qual se destacam os livros 1984, de George Orwell, e O Processo, de Kafka, textos máximos sobre as tendências geradoras do comunismo stalinista e do fascismo, mas, mais do que isso, de uma versão exacerbada desses, em que o Estado, além de excessivamente interventor e burocratizado, não necessita mais afirmar-se pela história. [2]
Ora, a constante nas ficções supramencionadas é justamente a ausência de passado, de uma história pessoal ou política que se possa afigurar compreensível. Nelas, assim, a própria possibilidade da história se viu destruída. O protagonista de O Processo, K., sequer tem um nome sonante identificável. Suas memórias são esparsas e confusas. [3] K. não compreende, da mesma forma, parte alguma do processo contra si movido, já que insondáveis e infindáveis os mecanismos burocráticos, distanciados do comum dos homens.
 Em Fahrenheit 451, Montag, depois de questionar a lei e iniciar, clandestinamente, a leitura de livros, a conhecer histórias de outros indivíduos e, portanto, a perceber que tem uma, pergunta a sua esposa, Linda, se lembra de quando se conheceram, no que ela, surpresa, responde negativamente. [4] O único contato de Montag com a autoridade é através de suas instituições repressivas, e isso porque delas faz parte. No entanto, mesmo sendo bombeiro, acha ridícula a suposição de que no passado esses profissionais apagassem incêndios, pois “casas foram sempre à prova de fogo”. A própria autoridade não mais sabe o que foi e, conseqüentemente, o que é.
O mais significativo de todos, contudo, é Winston, de 1984, que, como primeiro ato de rebeldia contra a ordem que vê, mas não entende, começa a registrar a sua própria história pessoal em um diário. Digna de referência é a passagem em que a rebeldia de Winston se instaura, no momento em que decide abrir o diário comprado clandestinamente e nele escrever, quando, em completo desespero, percebe que sequer sabe qual é o ano no qual se encontra: O que agora se dispunha a fazer era abrir um diário. Não era um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois não havia mais leis), porém, se descoberto, havia razoável certeza de que seria punido, por pena de morte, ou no mínimo vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. [...] Na verdade, não estava habituado a escrever a mão. Exceto recados curtíssimos, o normal era ditar tudo ao falaescreve, o que naturalmente era impossível no caso. Molhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um temor lhe agitara as tripas. Marcar o papel era um ato decisivo. Com letra miúda e desajeitada escreveu: 4 de abril de 1984. Encostou-se ao espaldar. Descera sobre ele uma sensação de completo desespero. Para começar, não sabia com a menor certeza se o ano era mesmo 1984. [5]
 Nos regimes fictícios – ou nem tanto – com os quais trabalhamos é manifesta a ausência de uma lógica narrativa que reconheça as pessoas e sua história privada e pública, e o exacerbamento de uma lógica burocrática que restringe o campo dos destinos singulares e das morais comunitárias. Neste sentido, tais obras retratam uma realidade na qual não se configura uma concretude contextualizada que embase as construções comunitárias abstratas – a proposição ou outorgação de leis. Nas sociedades apresentadas, faz-se impossível que pela abstração e racionalidade estatais se construa um futuro com base no passado legado ao presente pela lógica narrativa. Do passado nada se aproveita, do presente nada se entende, mas para o futuro se caminha – às cegas e arbitrariamente.
Assim, compreendem-se os motivos para a rebeldia através da história. Negar o passado, considerá-lo sempre algo a ser evitado, é atentar contra qualquer construção valorativa consuetudinária, a qual é alicerce necessário para a consolidação de regimes estáveis e justos, na medida em que garante o reconhecimento privado e singular dos valores públicos e coletivos, e vice-versa. Portanto, em um país em busca de si, de sua identidade, é urgente que se atente para o testamento que lega o passado, e não a valorização daqueles atos de pura vontade pelos quais, sem basear-se neste legado, busca-se construir um futuro melhor. É lastimável, por isso, o fato de no Brasil muitos utilizarem a pior das viseiras, a que impede a visualização e aproveitamento do passado, impossibilitadora de qualquer compreensão mútua entre o poder público e os sujeitos concretamente tomados.

Lucas do Nascimento
Coordenador Geral Discente do CUIC


[1] Condição humana que é fruto da pura aceitação da lei positiva e neutra em detrimento do substrato valorativo das instituições e da consciência moral dos sujeitos, isto é, do desejo de segurança frente à natural impredizibilidade da vida humana. Sobre o ponto, cf. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 6. ed., trad. de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 92.
[2] Na experiência mundial verificável, no que toca aos regimes totalitários concretizados, a constante indicativa de alienação foi a inexistência de histórias pessoais, possíveis instituintes da identidade individual dos seres, a partir da sempre presente afirmação de uma história estatal marcadamente construída, artificial, com a qual todos deveriam se identificar, facilitando a existência do homem totalmente político ou do cidadão total, pois a identidade dos sujeitos, dessa forma, passa a se confundir com a do Estado. O cotidiano dos homens, nessas sociedades, é construído de forma a aniquilar a existência do particular, ao mesmo passo em que se afirma fortemente a unidade de identidade do corpo político, no qual todos se fundem. Acerca do Estado total e do cidadão total, cf. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 54-55.
[3] Há discussão até mesmo sobre a correta organização cronológica dos capítulos dessa obra. Cf. CARRONE, Modesto. Um dos maiores romances do século. In: KAFKA, Franz. O processo. Trad. de Modesto Carrone. Rio de Janeiro: O Globo; Folha de S. Paulo, 2003. p. 246-247.
[4] Julgamos conveniente transcrever o diálogo completo presente na versão cinematográfica de Truffaut, em cena iniciada quando Montag descobre Linda retirando livros do esconderijo que havia criado. Legenda: M - Montag, L - Linda. “M - O que você está fazendo, Linda? / L - Encontrei estas coisas em casa. Eu não quero estas coisas, Montag. Elas me assustam. / M - Você passa o tempo inteiro na frente daquela ‘família’ na parede [programa de televisão interativo]. Estes livros são a minha família. Quando nos encontramos pela primeira vez? E onde? / L - O quê? / M - Quando nos conhecemos? / L - Não sei. Deixe-me pensar. Não, não consigo me lembrar. / M - Isso é um tanto triste, não acha? Eu acho. Eu acho que é muito triste. Por trás de cada um destes livros existe um homem. É isso que me interessa. Por isso, deixe-os em paz e volte para a cama”.
[5] ORWELL, George. 1984. 17. ed., trad. de Wilson Velloso. São Paulo: Ed. Nacional, 1984. p. 11-12.

domingo, 26 de junho de 2011

CUIC seleciona novos membros!


Círculo Universitário de Integração e Cultura está selecionando novos membros!

Idealizado em 2008 por estudantes da Faculdade de Direito da UFRGS, e coordenado academicamente pelo Prof. Dr. Salo de Carvalho, objetiva promover a reflexão e difusão artístico-cultural no meio universitário, tendo ainda como objetivos a integração entre os diferentes cursos universitários e entre esses e a comunidade, ancorando-se na interdisciplinaridade.
O CUIC é aberto a estudantes de todos os cursos universitários. Caso esteja interessado em participar, envie e-mail informando  curriculum vitae, instituição de origem e telefone de contato para cuic.ufrgs@gmail.com até o dia 05 de julho de 2011. A seleção consistirá em uma entrevista na qual o candidato falará sobre o seu interesse em participar do projeto. A entrevista ocorrerá no dia 14 de julho, entre as 11h45 e as 12h45, na Sala Alberto Pasqualini da Faculdade de Direito da UFRGS.
Espera-se dos candidatos interesse em estudo nas áreas de Direito, Literatura, História, Filosofia e Cinema, protagonismo e ânimo para a realização de eventos acadêmicos, bem como participação em reuniões de formação e do Conselho Deliberativo do CUIC, das quais provêem os encaminhamentos do programa.
Seja integrante do CUIC, e ajude a fazer da universidade um canal efetivo de comunicação entre diferentes cursos e culturas!

Programação de Junho/Julho 2011: PARTICIPE!

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Direitos Fundamentais em Tela: A Invenção da Infância

O CUIC - Círculo Universitário de Integração e Cultura da UFRGS e o Grupo 10 do SAJU - Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS, com apoio do Centro Acadêmico André da Rocha (CAAR), convidam para o evento DIREITOS FUNDAMENTAIS EM TELA: A INVENÇÃO DA INFÂNCIA, que ocorrerá no dia 15 de junho (quarta-feira), a partir das 18h, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFRGS. Contaremos com a participação de algumas das maiores autoridades do Estado na temática de Direito da Infância, como do Secretário Adjunto de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul, Miguel Granato Velasquez (especialista em direito comunitário e em infância e juventude), e da Coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude do MP/RS, Maria Regina Fay de Azambuja (doutora em Serviço Social e professora de Direito da Criança e do Adolescente na PUC/RS). Também participará do encontro a cineasta e Ma. em Ciência Política Liliana Sulzbach, diretora do documentário A Invenção da Infância (BRA, 2000, 26mins), que, nessa oportunidade, será exibido.
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Informações e inscrições podem ser realizadas no CAAR (Av. João Pessoa, n. 80, Porto Alegre - RS), presencialmente ou pelo e-mail caarufrgs@gmail.com. Certificados de 5h de atividades complementares poderão ser emitidos ao custo de R$5,00.


Venha refletir e debater,
contamos com a sua presença!

CUIC apoia evento "Direito, Medicina, Economia - Perspectivas orientadas pela Bioética"


Incrições em http://nedep.org/bioetica

sábado, 9 de abril de 2011

Direito e Literatura: um exercício de desaprendizagem


Publicado na 29 edição do Jornal Estado de Direito.


Judith Martins-Costa [1]


Entre Direito e Literatura há algumas semelhanças e muitas diferenças. A maior das semelhanças está na circunstância de a narração literária e a narração jurídica serem forças estruturantes de um mesmo Nomos, o universo normativo em que vivemos tanto quando vivemos no Cosmos, o mundo físico em que progressivamente nos inserimos desde o nosso nascimento (R. Cover). O universo normativo é um “universo narrativo”: normatizar é inseparável do narrar. Narra-se o texto da lei, narram os que dizem o que a lei diz.
Toda narração é constitutiva. É no Nomos, diz Robert Cover, que descobrimos a alteridade e aprendemos a nos mover entre as normas; é no Nomos que conhecemos e operamos os nossos conceitos normativos. Fundados nessa coabitação normativa em tudo semelhante à coabitação psíquica ou à coabitação linguística, “criamos e sustentamos, constantemente, um mundo do bem e do mal, do legal e do ilegal, do válido e do inválido”, relativamente aos quais as regras e os princípios, as instituições solenes do Direito e as convenções da ordem social constituem apenas uma pequena parte, pois “nenhum conjunto de instituições jurídicas, nenhum conjunto de prescrições existe independentemente das narrações que os situam e lhes dão sentido” (R. Cover).
É nesse ponto, precisamente, que encontro a primeira razão para o trabalho comparativo (desde que seriamente levado a efeito) entre Direito e Literatura. Ambos se ocupam de muitos temas comuns: casamento, testamento, pena, culpa, castigo, dinheiro, risco, os laços sociais e as suas rupturas; ambos, igualmente, repousam em ficções, no “como se”, muito embora no Direito estas sejam ficções necessárias à produção de uma coerência sem a qual não seria possível ordenar (Biet), muito embora a Literatura, frequentemente, se aposse dos “como se” do Direito para as por em causa, pela sátira ou pela reflexão.
O que mais importa, contudo, são as diferenças. É pelas diferenças, comparativamente estruturadas, que a associação entre Direito e Literatura encontra, a meu juízo, a maior relevância.
O Direito, disse Bernard, é ao mesmo tempo espelho e geômetra do mundo; já a Literatura nada quer espelhar nem ordenar – sua função é subverter. A Literatura não é “representação” do real, é constituição/reconstrução do real, pela palavra. Não ordenando, mas subvertendo, pode re-situar os outros discursos, as demais narrações estruturantes do Nomos.
A capacidade da Literatura para re-ordenar os outros discursos, deriva fundamentalmente, segundo Bessiere, da conjugação entre três traços: o transporte, a não-literalidade e a plurivocidade. Diferentemente do discurso da lei, fundado numa pretensão de composição entre littera e espírito, entre texto e significado, a palavra literária marca a distância da literalidade e, por isso mesmo, trans-porta permitindo visualizar, compreender, relativizar e preencher os conceitos utilizados pelo jurista. A plurivocidade decorre de o texto literário – sendo feito de deslocamentos, contaminações, predações, automatismos, intertextos – estar “fora do reconhecimento por uma voz singular” (Bessiere) permitindo, justamente, mensurar o que não é a nossa voz pessoal. Por conta da conjugação entre essas três características os textos literários viabilizam o compartilhamento de critérios de representação de uma dada comunidade conferindo a condição de sua inteligibilidade.
O compartilhamento de critérios integra e constitui o Nomos, estruturando o chão da coahabitação normativa. No mundo normativo, afirma Robert Cover, o Direito e a narração estão inseparavelmente ligados, pois toda prescrição exige ser situada no interior de um discurso, sendo precedida por uma história, um destino, um início e um fim, uma explicação e uma finalidade. A narração explicita as normas, conferindo a sua significação: sem o suporte narrativo toda norma seria vazia de sentido. É por isso que viver em um mundo jurídico, “exige conhecer não apenas os preceitos, mas, igualmente, aquilo que os liga aos estados de coisas possíveis e plausíveis, o que demanda sermos capazes de integrar “o ser” e o “dever ser” e, igualmente, o “pode ser”. O “mundo comum” de que falara Cover é o mundo tecido pelas relações de “co-presença” (Genette), de inclusão, e, também, por relações de derivação, da existência de textos em relação. Entre narração (literária) e normação (jurídica) existe um nexo dinâmico, aquela tecendo a trama desde a qual a norma é compreensível, conferindo-lhe os significados, ressignificando-as, preenchendo os espaços vazios, interagindo, dialogando, pois o Nomos é intertextual.
Os critérios compartilhados aptos a tornar inteligível certo discurso, são encontrados no Direito, modo geral, na narração doutrinária. Esta resulta na formulação de modelos hermenêuticos destinados a atuar como espécie de metalinguagem, cujo valor é não apenas cognoscitivo, mas, verdadeiramente, constitutivo da própria experiência jurídica (Miguel Reale). É, portanto, concomitantemente, narração e normação. O que, porém, está por detrás dos textos doutrinários em sua tarefa de narrar/normatizar os critérios? Quais são os traços deixados na concha – isto é, nos conceitos, objeto da narração doutrinária – pelos seus antigos locutores, que continuam a pesar em nosso raciocínio?
Tal qual o marisco que um dia habitou a concha abandonada na praia e está hoje desaparecido – mas nela deixou os seus traços -, também assim certas palavras (como licitude; personalidade; culpa; risco; responsabilidade; contrato; patrimônio; propriedade; família; igualdade sucessória, etc) cotidianamente usadas pelos juristas são “palavras habitadas” que, no seu curso, “nunca esquecem seu trajeto, nunca se desembaraçam totalmente do domínio dos textos concretos a que pertencem” (Bakhtin). Por isso o seu sentido mostra-se melhormente compreensível em sua riqueza quando ouvimos as vozes transportadas literariamente.
Daí a relevância do trabalho comparatista entre esses dois campos narrativos-normativos, traçando-se a comparação pelo método da estruturação entre as diferenças. Abandonada a pretensão da similitude entre os campos, poderemos compreender que os textos literários – suspendendo os juízos, questionando os vereditos, representando as representações do Direito – funcionam como um instrumento de ótica sem equivalente, capaz de mostrar aquilo que os textos da doutrina não podem expor: o modo pelo qual, minuciosamente, se engrenam cotidianamente, por signos quase invisíveis, as normas e os costumes, as instituições e as trajetórias sociais (Tessier-Erminger).  Os textos literários atuam, pois, na desaprendizagem dos significados estratificados pela mentalidade, pelo senso comum dos juristas, e, consequentemente, nos ensinam a ver, compreendendo sobre o que estamos realmente a falar quando empregamos, obnubilados, as palavras de nosso cotidiano forense.






[1] Judith Martins-Costa é vice-presidente do IEC – Instituto de Estudos Culturalistas. Livre-Docente pela Universidade de São Paulo. Foi professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFRGS entre 1992 e 2010. O texto aqui reproduzido sintetiza o que escreveu em: NARRAÇÃO E NORMATIVIDADE – Ensaios de Direito e Literatura, a ser brevemente publicado pela Editora GZ, Rio de Janeiro.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Resenha - "Antígona" para além do Direito Natural: edição indispensável aos estudiosos da tragédia sofocleana

Lucas do Nascimento [1]


ANTÍGONA
Sófocles
Tradução: Lawrence Flores Pereira
Introdução e notas: Kathrin Holzermayr Rosenfield
Ed. TOPBOOKS, 208 p.

Antígona, de Sófocles, suscita acirrados debates há séculos. Somente nos últimos dois, produziram-se dezenas, se não centenas de abordagens sobre a tragédia. Representada pela primeira vez em 441 a.C., em Atenas, a obra nasceu sob os auspícios da genialidade sofocleana, recebendo efusivo acolhimento na polis ateniense. Contudo, apenas destacou-se nas discussões jurídicas modernas por meio de Hegel. A abordagem, ainda hoje realizada, que sublinha o conflito entre direito natural e direito positivo em Antígona remonta à mudança de leitura efetuada pelo filósofo alemão, que estabeleceu novos cânones para a interpretação da obra. Não fossem contribuições intelectuais como as de Kathrin Rosenfield e traduções como a de Lawrence Flores Pereira, arriscaríamos, no Brasil, a permanecer limitados a uma compreensão excessivamente alegórica da tragédia, simplificando sua complexidade em um conflito entre poucos e pobres elementos abstratos, isto é, os de direito natural e de direito positivo.
Na edição de Antígona da qual por ora se trata, o tradutor e a comentarista norteiam o seu trabalho na leitura realizada pelo poeta Hölderlin, expoente do romantismo alemão. Contudo, servem-se também de outras edições consagradas sobre a tragédia (Jebb, Mazon, Schadewaldt, Reinhardt, Dawe, Bollack e Loraux), colocando-a em debate sob diferentes pontos de vista. Como se não bastasse a qualidade das fontes, acertam na metodologia: com vistas às ambigüidades e nuances do texto grego, os autores preocupam-se com o desbravamento de seu “subtexto”, ou seja, da riqueza e complexidade que afloram “da superfície aparentemente equilibrada e racional da poesia sofocleana” (p. 10). Não é por outro motivo que, atentos ao que há de trágico na tragédia, ao sutil e poético da experiência de vida humana, conseguem retirar do estudo importantes e singulares resultados. Vejamos o contexto visualizado pelos autores, a partir do qual se desenvolverão os grandes e pequenos conflitos nesta edição de Antígona, garantindo sua originalidade.
Antígona pertence à linhagem dos Labdácidas, ou seja, à linhagem dos reis de Tebas. Em Édipo Rei, Laio, seu avô e rei de Tebas, é morto por seu pai, Édipo, que casa com sua mãe, Jocasta, tornando-se o novo rei da cidade. Em outras palavras, Édipo mata o próprio pai sem o saber, se une com sua própria mãe, também sem conhecimento do parentesco, e gera filhos dessa união, isto é, Antígona, Polinices, Etéocles e Ismene. Portanto, Antígona nasce de um incesto, sendo ao mesmo tempo irmã e filha de Édipo, assassino de seu avô. Dessa maneira, instaura-se não apenas uma problemática de cunho religioso (poluição de Tebas pelo destino de seus dirigentes), mas também familiar (genealógica) e dinástica (política) mais ampla.
Em razão de tais fatores, a desgraça e a morte se abatem sobre Édipo e sobre Jocasta. [2] Os dois irmãos de Antígona entram, então, em um acordo sobre se revezarem em períodos de um ano no trono de Tebas. No entanto, Etéocles desrespeita o pacto e não passa ao irmão o trono da cidade no período acordado, o que leva Polinices a aliar-se à polis de Argos, a fim de submeter Etéocles à força. Dessa forma, os irmãos digladiam-se pelo trono de Tebas, a ponto de por pouco não levarem a cidade à ruína. Os dois acabam por matarem um ao outro, fratricidas e suicidas, pelo sangue derramado ser o do irmão ao mesmo tempo que o próprio. Cometem, portanto, dupla transgressão, em ameaça redobrada ao solo pátrio. [3]
Quem salva Tebas é Creonte, descendente de Meneceu e Oclaso e, portanto, pertencente a uma linhagem de conselheiros reais e de regentes. Para isso, sacrifica seu filho Megareu, “coroando gloriosamente seus serviços meritórios” (p. 13-14) à cidade. Contudo, por maiores que tenham sido seus esforços, vê Tebas e suas pretensões à realeza ameaçadas pelos Labdácidas, linhagem em desgraça que permanece viva e em Tebas sob as figuras de Antígona e de Ismene.
Uma das maiores virtudes desta edição de Antígona é manter sempre em vista o contexto no qual se desenvolve a obra, ou seja, em que ambiente se insere a interdição de Creonte em relação ao enterro de Polinices e a desobediência de Antígona para com Creonte. Antígona não só é a viva personificação de uma amaldiçoada linhagem de reis, como é mulher e tem direitos em relação ao trono. Lembra Kathrin que na época em que a peça Antígona foi apresentada, existia em Atenas a instituição do epiklerado, “que garantia à filha de um rei morto sem descendência o direito e o dever de parir um descendente para seu pai” (p. 16). Além do mais, Antígona é uma ameaça não-passiva, já que rebelde aos intentos de Creonte.
Enquanto isso e por outro lado, Creonte é o instrumento de uma ordem que se julga necessária frente ao caos. Procura ele afirmar o seu poder na arruinada cidade que salvara, o que faz entendendo proteger Tebas daqueles que a desgraçaram, a linhagem dos Labdácidas. Como se percebe, a tragédia está longe de limitar-se ao embate dicotômico entre direito natural e direito positivo. É nesse sentido que Kathrin identifica não um, mas três grandes conflitos em Antígona: o enterro de Polinices; o governo de Tebas; e a purificação da cidade.
Com grande conhecimento sobre as práticas do mundo antigo, os autores desenvolvem esses problemas e outros mais deles decorrentes. Surpreendentemente, conciliam o aparentemente inconciliável, isto é, o espírito científico e o rigor metodológico com a riqueza artística, em uma tradução produzida para a encenação de Antígona no palco. [4] É dessa forma que os autores, de maneira ímpar, tornam esta uma edição essencial para aqueles que, em língua portuguesa, adentrarem no complexo universo da mais conhecida tragédia de Sófocles.





[1] Lucas do Nascimento é bacharelando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Coordenador Geral do CUIC (desde 2009).
[2] O destino de Édipo e o de Jocasta encontram-se narrados nas obras Édipo Rei e Édipo em Colono, ambas de Sófocles.
[3] Os episódios da guerra entre Etéocles e Polinices estão na tragédia Os sete contra Tebas, de Ésquilo.
[4] Inclusive, Luciano Alabarse e seu elenco inspiraram-se nesta edição para, em parceria com Kathrin, Lawrence, além de atores, músicos, bailarinos e cantores, apresentarem Antígona nos palcos de Porto Alegre nos anos de 2004 e 2005.